Nos últimos anos, temos visto cada vez mais jogos que se aventuram por narrativas complexas e temas filosóficos, especialmente no campo da ficção científica. 1000xRESIST, desenvolvido pela Sunset Visitor, foi um jogo lançado em abril de 2024 que se insere nesse movimento com sua própria abordagem, trazendo temas importantes para hoje, como memória, resistência, transumanismo, identidade, singularidade, dentre diversos outros. Porém, infelizmente, ele ficou fora dos holofotes da cultura gamer de modo geral.
Isso tudo é uma pena porque 1000xRESIST tem uma das histórias mais bem escritas dos games. Sabe aquele jogo que precisamos mergulhar no texto e ler nas entrelinhas, buscando significados para teorizar sobre o mundo? O que posso adiantar é que 1000xRESIST é prato cheio para quem gosta de se perder nesse tipo de coisa.
Esta é uma matéria que decidi fazer porque acho que 1000xRESIST tem qualidades únicas. Mesmo quase um ano após seu lançamento, o jogo vem ganhando notoriedade e sendo indicado para premiações e acho que vale pena destacá-lo aqui na comunidade do Galinha Viajante.
Particularmente, este foi um jogo que trouxe uma curiosidade gostosa sobre o universo que nem foram minhas experiências com NieR: Automata, 13 Sentinels: Aegis Rim e até Doki Doki Literature Club, para citar alguns que lembro. É um jogo que vem nutrindo um carinho por mim meses depois de terminá-lo e que, por isso, quero compartilhar essa experiência um pouco e convencê-los ativamente a experimentá-lo.

Entre clones e memórias: A construção narrativa
A base de 1000xRESIST é uma mistura entre Walking Simulator e Visual Novel, que criam um contexto direcionado a contar uma história sci-fi em um futuro distópico no qual a humanidade foi dizimada por uma doença alienígena e apenas clones femininos são as sobreviventes nesse mundo.
No controle de Watcher, uma das clones, investigaremos dois universos: O Pomar (The Orchard), que é a “cidade” que vivemos, e as memórias de ALLMOTHER, criadora dos clones.
O Pomar possui é uma sociedade bastante interessante e única, onde todos clones são divididos em funções vinculadas a cores. Cada função tem sua cor específica: azul para as Watchers (observadoras), rosa para as Healers (curadoras), roxo para as Knowers (aquelas que sabem), verde para as Fixers (consertadoras) e laranja para as Bang Bang Fires (guardiãs).”
Por agora, o aspecto interessante é que essas personagens trabalham juntas respeitando as regras da vida no Pomar e construindo uma cultura única, em que há uma linguagem específica, ritos, formas artísticas, etc. Esse funcionamento coletivo é reforçado por um aspecto quase familiar: as personagens se veem como irmãs, vivendo sob a orientação da figura materna chamada ALLMOTHER que, apesar de não coabitar no Pomar, exerce um tipo de controle por meio de subordinadas de hierarquia superior.
E ao entrar em contato com esse lugar, já ficamos nos perguntando a todo momento, o que é este ou aquele objeto? Ondem estão as outras pessoas? O que aconteceu? Em que ano estamos? Aquele monte de questionamento que um bom sci-fi nos traz que conduzem a narrativa.
O que descobrimos rapidamente, é que esta “cidade” existe depois da humanidade ter sucumbido para uma invasão alienígena que disseminou uma doença misteriosa em todo o planeta. Ou seja, estamos participando de uma sociedade no pós-apocalipse. Isso já traz ainda mais perguntas: como ocorreu isso? Quem são os aliens? Dentre diversas outras.

O outro lugar que somos apresentados, logo no começo, são as memórias da ALLMOTHER que navegamos por dentro utilizando a personagem Watcher, por meio de um processo chamado de “comunhão”. Nele, as irmãs compartilham a parte da memória da Allmother que cada uma contém dentro disso desde sua concepção. Ao navegar por essas memórias, vamos aos poucos conhecendo de onde vem a figura misteriosa de ALLMOTHER. Contudo, podem ficar tranquilos que o jogo coloca isso de um modo tão fragmentado que ficamos com mais dúvidas do que certezas. A partir disso, a gente vai aos poucos juntando peças narrativas e colando-as com o tempo para saborearmos cada resolução de mistério.
Um detalhe aparentemente pequeno, mas que revela a complexidade do jogo, é o desenvolvimento de uma linguagem própria pelas personagens. Elas utilizam um tipo de fala para se cumprimentarem, que substitui o “bom dia”, que é único e que faz sentido dentro do próprio contexto. Isso pode parecer pequeno, porém com o desenvolver do jogo, essas falas começam a soar como poéticas, ao perpassarem nuances tantos sérias quanto sarcásticas da história.
Jogabilidade e experimentação narrativa
Sendo um jogo essencialmente narrativo, 1000xRESIST não tenta reinventar a roda em termos de jogabilidade. Há exploração, diálogos interativos e momentos de investigação, mas o foco principal está na imersão na história e no mundo do jogo. Se eu fosse defini-lo, eu diria que 1000xRESIST é um misto entre Walking Simulator e Visual Novel.
O aspecto Walking Simulator é dado porque vamos andar pelo cenário, em terceira pessoa, e interagir com personagens e objetos. Não há combates e nem nada que te acelere nesse processo a não ser a própria curiosidade. Já o aspecto Visual Novel se dá pela quantidade de texto e diálogos que o jogo tem. Então, imaginem que o jogo mistura a narrativa densa de uma Visual Novel, porém você pode andar pelo cenário livremente e escolher quando, onde e com o que interagir.
Outra coisa da Visual Novel, que também é importante comentar, é a existência de diálogos que não direcionam para a narrativa principal, mas sim para interações cotidianas. Para alguns, isso pode ser considerado enrolação, porém, apesar de fragmentar a cadência da narrativa, essas conversas ajudam a dar contornos e complexidade tanto para os personagens quanto para o mundo.
A Arte de 1000XRESIST não é perfeita, mas é Arte mesmo
Visualmente, 1000xRESIST é estilizado de um modo único, onde é notório que os desenvolvedores trabalharam com limitações, onde você pode encontrar cenários com pouco detalhes e modelos de personagens com texturas simples. No entanto, há uma evidente ênfase na produção “daquilo que importa”, que são os aspectos artísticos, pois o que tem aqui realmente funciona. Há momentos, por exemplo, que são muito impactantes.

Dentro disso, a atmosfera do jogo acaba sendo bem única com o uso de uma paleta de cores que varia entre tons frios e sombrios, transmitindo a sensação de isolamento e opressão daquele mundo. Desse modo, os cenários quase que minimalista, no sentido que enfatizam o que é importante para a narrativa, trazem um sentimento de vazio que combina com o jogo.
Talvez, do jeito que estou falando pareça um problema do game, mas digo que esse sentimento torna tudo mais legal conforme o jogo se desenvolve. Essa construção que lembra até um pouco da ideia de “natureza morta” funciona para compor um sentimento de isolamento, de vazio, que combina com a personagem Watcher e suas dúvidas e angústias. O que quero dizer é que o vazio do mundo pode ser entendido com um vazio existencial. Algo que faz sentido considerando que estamos jogando com um clone, em um mundo feito de clones muito parecidos.
Como podem notar, o que quero apontar que o forte do jogo está nos textos, nas expressões das personagens, nas tomadas de câmera, dentre outros aspectos que são tão potentes e curiosos que puxam nossa atenção. Isso tudo cola muito bem na nossa percepção quando adicionamos uma trilha sonora muito bem feita e uma dublagem muito emotiva.
DILEMAS: o que fazer quando nem entendemos quem somos
Esses elementos que tenho apontado criam o quadro pelo qual a narrativa se constrói. No começo acompanhamos a Watcher tendo um dos primeiros momentos tristes, no qual assistimos ela se despedir de sua companheira, Fixer, que estava indo embora em um trem enviado pela ALLMOTHER. O contexto é que Fixer tinha sido reconhecida o suficiente para estar ao lado da ALLMOTHER. E o jogo começa com essa dificuldade tanto na aceitação do fato quanto na expressão da Watcher que fica se demonstrando fechada sentimentalmente naquele momento.
Após isso, enquanto ainda estamos tentando entender o acontecimento, iremos entrar em uma das memórias. Nesse processo, iremos andar pela escola que ALLMOTHER estudou enquanto ainda era jovem e se chamava Iris. Nessa hora, somos apresentados à mecânica de navegação pelo cenário no qual alteramos as camadas que estamos naquela memória. É uma forma de estar num mesmo lugar, porém em momentos diferentes no tempo. Desse modo, podemos alternar entre períodos de um passado distante em que a escola ainda estava funcionando com um posterior já nos pós pandemia. Exatamente, gente! Descobrimos nessa hora que houve uma pandemia, que a humanidade estava perto do fim e que tudo isso foi produzido por aliens chamados de Ocupantes.

Apesar desses fatos intrigantes, que já colocam muitas dúvidas em nossa cabeça e nos engajam na busca, o ponto forte de 1000x Resist é que a maioria das coisas realmente não são jogadas em nossa cara. Para desenrolar essa história, precisamos juntar os “caquinhos” da realidade que vai sendo apresentada tanto em momentos sutis e cotidianos quanto em situações viscerais e chocantes. Conforme formos explorando o jogo descobriremos um processo que sai de momentos tranquilos de uma vida escolar, um tanto quanto cliché até, e passa por dúvidas e angústias que as pessoas passaram. Em alguns casos, veremos até desespero.
Indo para outro lado, durante os momentos em que você está andando pelo Pomar, você irá encontrar uma sociedade baseada em funções na qual temos 5 figuras principais: Watcher, aquela que observa; Knower, aquela que sabe; Fixer, aquela conserta; Healer, aquela que cura; e a Bang Bang Fire (nome muito maneiro), aquela que toma conta – num sentido de proteção que vai a nível militar. Cada uma delas, utiliza um tipo de cor para simbolizar sua função e, inclusive, o local que gerencia suas funções. Além disso há a Principal, que é aquela que gerencia tudo ali, como uma espécie de prefeita.
As outras pessoas que estão no Pomar, são chamadas de Shells (cascas) que vivem treinando para desempenhar a função de irmã superior. Exemplo, as Shells que estão associadas a Knower, utilizam roupas roxas como ela e ocupam o espaço da biblioteca do Pomar realizando estudos para saber, adquirir conhecimentos. E isso acontece com todas elas, diferenciando-se conforme a função.
A Watcher, nesse contexto, é uma personagem também intrigante por causa dos sentimentos ambíguos que causa. No início, ela não é lá muito maneira, afável ou gentil. Ela é seca e de poucas expressões no começo do jogo, o que já traz mais curiosidades sobre a personagem. Watcher é tão focada em sua função de observar, e em sua devoção à ALLMOTHER, que ela nos traz sentimentos mistos constantemente. Ela tem algumas atitudes que nos deixam em fúria até.

Apesar do exemplo da Watcher parecer ambíguo do jeito que estou falando, é a mistura de sentimentos que fazem dessas personagens ainda mais interessantes e a narrativa vai nos deixando muito curioso para conhecê-las. Elas demonstram muita humanidade, com suas fraquezas e potencialidades ao expressar suas qualidades e defeitos na tentativa de lidar com as questões que posicionadas por esse mundo complexo e curioso. Até mesmo as Shells, que são personagens com menor participação ativa, chamam a atenção e fazem com que nos importemos com elas mesmo com uma quantidade menor de textos e participação direta na narrativa.
“Sem dar spoilers, posso afirmar que a narrativa é envolvente: ela nos leva a desatar pequenos nós enquanto cria novas intrigas — que vão desde momentos cotidianos até cenas de grande carga dramática. Além disso, ainda temos, como toda boa história, alguns twists que “explodem cabeças” e que deixarão o jogo ainda mais interessante.
Enfim, fiz o máximo para não colocar spoilers porque gostaria que vocês experimentassem esse jogo único por si próprios.
Considerações finais
1000xRESIST é um ótimo jogo que conta uma história única. Ele é aquele tipo de jogo que consegue usar a mídia videogame para contar uma história única abordando temas como memória, afetividade, identidade, humanidade, existência, dentre diversos outros que se entrelaçam e ficam coçando a todo momento em nossa cabeça. Não consigo imaginar essa história sendo contada de modo tão efetivo e especial por outra mídia. No entanto, lembro para aqueles impacientes que o jogo que exige leitura constante, pois é focado na narrativa.
1000xRESIST é muito especial porque nos força a pensar humanidade por meio de sua narrativa. É um jogo que considero importante e por isso estou aqui escrevendo sobre ele um ano depois de seu lançamento. Por isso eu falo: joguem o jogo e mergulhem na história. Deixem a narrativa colocá-los em posição de alteridade com o Outro. Particularmente, senti que o jogo me fez pensar questões que me ajudaram a ser mais empático e gostaria de compartilhar esse sentimento com mais pessoas.
Em resumo 1000xRESIST é um jogo especial e recomendo para todos. Com certeza, ele foi uma das melhores experiências lançadas em 2024.